Fisiologia

História da Fisiologia

A Fisiologia (do grego physis = natureza e logos = estudo) é o estudo das funções e do funcionamento normal dos seres vivos, bem como dos processos físico-químicos que ocorrem nas células, tecidos, órgãos e sistemas dos seres vivos sadios. Na Fisiologia se estuda o funcionamento dos sistemas celulares e orgânicos (nervoso, muscular, endócrino, cardiovascular, respiratório, digestório e urinário), bem como suas interações entre si e com o meio ambiente. De forma geral, a fisiologia aborda assuntos relacionados à nutrição, circulação, respiração, excreção, aos sistemas de integração aos movimentos corporais, suporte e movimentos corporais, controle imunitário e reprodução, ao logo da história evolutiva.

Como as demais ciências ocidentais, a fisiologia nasceu na Grécia, há mais de 2500 anos. A origem da palavra fisiologia vem do termo grego phýsis, que significa natureza. Este termo deu origem tanto à palavra física quanto à fisiologia. Entretanto, a distinção entre essas duas disciplinas, uma relacionada ao funcionamento do universo e a outra relacionada ao funcionamento dos organismos vivos só foi levada a cabo na modernidade. Os primeiros pensadores gregos foram os chamados pré-socráticos, que recebem essa denominação por terem vivido antes de Sócrates. Esses homens, mistos de filósofos e cientistas, foram os pioneiros em realizar um estudo racional e científico da natureza. São, dessa forma, considerados os primeiros fisiólogos, os “estudantes da natureza”. A medicina, concebida como uma prática racional, nasceu também na Grécia, na mesma época dos pré-socráticos. Sua fundação está ligada à figura de Hipócrates (460 e 370 a.C.); o conjunto de sua obra forma o Corpus Hippocraticus, onde encontramos descrita sua concepção de fisiologia. Ela baseava-se na doutrina dos “quatro humores”, segundo a qual o corpo humano seria constituído por uma mistura de quatro fluidos, ou humores: o sangue, a fleuma, a bile amarela e a bile negra.

A mais influente figura fisiológica da Antiguidade foi Cláudio Galeno (129-200 d.C.). Médico de gladiadores, ele viveu em Roma e chegou a tratar do imperador Marco Aurélio. Alguns o consideram o pai da fisiologia experimental, devido às grandes descobertas que realizou por meio de experimentos em animais. Galeno julgava-se herdeiro intelectual de Hipócrates e da ciência grega, e sua fisiologia baseava-se na doutrina dos quatro humores. Os três principais órgãos do corpo humano, segundo ele, seriam o fígado, o coração e o cérebro. O sangue seria produzido no fígado a partir dos alimentos absorvidos no intestino, e daí distribuído para todo o organismo, passando pelo lado direito do coração. No ventrículo direito, uma pequena parte do sangue atravessaria o septo interventricular através de minúsculos canais, penetrando o ventrículo esquerdo, local em que o sangue se misturaria ao ar trazido dos pulmões. Dessa maneira, Galeno e os fisiologistas que o sucederam não concebiam a circulação sanguínea: o sangue seria continuamente produzido no fígado. O esquema galênico dominou os estudos fisiológicos até ser derrubado por William Harvey, no século XVII.

O termo “fisiologia” foi cunhado pelo médico francês Jean François Fernel (Fernelius 1497-1558) para descrever o estudo das funções corporais. A partir de 1534, ele passou a dedicar-se inteiramente à medicina, profissão na qual se formou em 1530. Sua extraordinária cultura geral, o talento e o sucesso com os quais tentou reviver o estudo dos antigos médicos gregos granjeou-lhe grande reputação e por fim, o cargo de médico da corte. Escreveu Monalosphaerium, Sive astrolabii genus, Generalis horaril structura et usus (1526), De proportionibus (1528), De evacuandi ratione (1545), De abditis rerum causis (1548) e Medicina ad Henricum II (1554).

O próximo grande passo na investigação anátomo-fisiológica será dado na Renascença, por Andreas Vesalius (1514-1564). Sua obra-prima, ricamente ilustrada - o De Humani Corporis Fabrica (A Estrutura do Corpo Humano), de 1543 - é considerada por muitos como a maior contribuição isolada para a medicina de todos os tempos, e marca o início da anatomia e fisiologia modernas. Professor da Universidade de Pádua, na Itália, Vesalius estava contaminado pelo espírito criativo e científico do renascimento italiano. Devemos lembrar que os dois maiores gênios artísticos dessa época, Leonardo da Vinci e Michelangelo, estudavam anatomia e praticavam dissecções em cadáveres humano. Graças a Vesalius, uma importante escola anatômica e fisiológica se estabeleceu em Pádua. Dela, fizeram parte grandes pesquisadores, como Realdo Matteo Colombo (1516-1559), Gabriel Fallopio (1523-1562) e Girolamo Fabrici d’Aquapendente (1533-1619). Sob a orientação deste último, um médico inglês passou os anos de 1599 a 1602, a fim de obter seu doutoramento. Esse homem foi William Harvey (1578-1657).

Quando voltou à Inglaterra, Harvey continuou suas pesquisas sobre o coração iniciadas na Itália. Elas foram publicadas, após duas décadas de estudos, no tratado Exercitatio Anatomica de Motu Cordis et Sanguinis in Animalibus (Estudo Anatômico sobre o Movimento do Coração e do Sangue nos Animais), em 1628. Nesse livro, Harvey propôs a teoria de que o sangue circula pelo organismo, impulsionado pelos movimentos de contração muscular do coração. A partir dessa teoria, a concepção do funcionamento do corpo animal foi radicalmente alterada; desde então a fisiologia começou a tomar a forma que conhecemos hoje. O De Motu Cordis foi o primeiro tratado da era moderna dedicado a um tema estritamente fisiológico, o que não acontecia desde a Antiguidade. Nele, estão presentes vários dos métodos utilizados pela fisiologia moderna, como, por exemplo, a extrapolação de conclusões tiradas a partir de animais para os seres humanos.

Duas grandes linhas de pesquisa dentro da fisiologia surgiram durante o século dezoito: a eletrofisiologia e as pesquisas sobre o metabolismo. A eletrofisiologia nasceu no interior de um caloroso debate entre os italianos Luigi Galvani (1737-1798) e Alessandro Volta (1745-1827). O primeiro, professor de anatomia da Universidade de Bolonha, publicou o De Viribus Electricitatis in Motu Musculari Commentarius (Comentário Sobre o Poder da Eletricidade no Movimento Muscular), em 1791. Nessa obra, Galvani descreve vários tipos de preparações experimentais nas quais ele estimulava eletricamente nervos de rãs e observava a contração muscular que ocorria em suas patas. Esses experimentos o levaram a propor a existência da “eletricidade animal”. Volta, então professor de física da Universidade de Pavia, analisou a obra de Galvani e realizou seus próprios experimentos. Segundo Volta, as rãs não eram capazes de produzir eletricidade intrinsecamente. A contração observada em suas patas seria resultado de um artefato experimental: a eletricidade seria gerada pelos metais utilizados para conectar os nervos e músculos da rã nas preparações.

As pesquisas metabólicas tiveram grande impulso graças ao químico Antoine Lavoisier (1743-1794). Aplicando os novos conceitos da química nascente - que ele mesmo ajudara a fundar - Lavoisier percebeu a estreita relação entre o processo de combustão e a respiração animal. Os seres vivos absorveriam oxigênio e liberariam gás carbônico, da mesma forma que faz uma substância quando em combustão. Baseado nesse princípio, Lavoisier realizou diversas medidas relacionando a produção de calor animal com o consumo de gases durante a respiração. Esses trabalhos proporcionaram um grande avanço em direção da inserção dos organismos vivos no reino físico-químico. No século XIX, com a descoberta do princípio da conservação de energia pelos físicos, diversos pesquisadores deram continuidade a esses estudos. Graças às investigações de Carl Voit (1831-1908), Max von Pettenkofer (1818-1901) e Max Rubner (1854-1932), dentre outros, verificou-se definitivamente que o princípio de conservação de energia aplicava-se também aos seres vivos.

A fisiologia como a entendemos e a praticamos hoje foi moldada ao longo do século XIX, sobretudo na Alemanha e na França. A fisiologia alemã teve em Johannes Müller (1801-1858) uma de suas maiores figuras. Professor e inspirador de toda uma geração de grandes fisiologistas, Müller e seus discípulos foram responsáveis por descobertas decisivas para o futuro da disciplina. Dentre os principais conceitos desenvolvidos na Alemanha dessa época, a teoria celular, sem dúvida, ocupa um lugar central. A ideia de que a célula é a unidade fundamental de todos os organismos vivos foi desenvolvida por dois alunos de Müller: Matthias Schleiden (1804-1881) e Theodor Schwann (1810-1882). As primeiras células, no entanto, foram observadas pela primeira vez quase duzentos anos antes, pelo inglês Robert Hooke (1635-1703), com o auxílio do então recém inventado microscópio. Contudo, foi apenas em 1839, quando Schwann publicou suas pesquisas sob o título Mikroskopische Untersuchunger über die Uebereinstimmung in der Structur und dem Wachstum der Thiere und Pflanzen (Pesquisas Microscópicas sobre a Conformidade na Estrutura e Crescimento entre Plantas e Animais) - obra que incorporava os trabalhos de Schleiden - que a célula passou a ser vista como a sede das atividades metabólicas do organismo. A eletrofisiologia obteve um grande avanço também nas mãos de outros dois alunos de Müller: Emil du Bois-Reymond (1818-1896) e Hermann von Helmholtz (1821-1894). Foi Helmholtz o primeiro a medir a velocidade de condução de um potencial de ação no nervo.

Outra figura fundamental no desenvolvimento da fisiologia alemã foi Carl Ludwig (1816-1895). Em Leipzig, Ludwig fundou um Instituto de Fisiologia que veio a tornar-se um grande centro de referência da nova fisiologia experimental europeia, atraindo estudantes do mundo todo. Grandes avanços teóricos e tecnológicos - como a invenção do quimógrafo - foram desenvolvidos no Instituto. A fisiologia cardiovascular foi uma das principais áreas de investigação no Instituto: destacam-se as descobertas do centro vasomotor bulbar, da permeabilidade capilar e a lei do “tudo ou nada” e do período refratário cardíaco.

Na França, viveu aquele que é considerado o pai da fisiologia experimental contemporânea: Claude Bernard (1813-1878). Aluno do grande experimentalista François Magendie (1783-1855), Bernard publicou, em 1865, o livro Introduction à l'étude de la Médecine Expérimentale (Introdução ao Estudo da Medicina Experimental), em que lançou as bases metodológicas da nova fisiologia experimental. Dois pontos fundamentais foram insistentemente ressaltados por Bernard: a autonomia da fisiologia e a importância da experimentação. A fisiologia, segundo ele, deveria constituir-se numa ciência autônoma. Ao invés de submeter-se, ou reduzir-se, à física, à química ou à anatomia, como defendiam alguns, o fisiologista deveria preocupar-se primordialmente com fenômenos fisiológicos por natureza. Assim, o fisiologista deveria, nas palavras de Bernard, “começar a partir do fenômeno fisiológico e procurar sua explicação no organismo”.

Bernard insistiu também na importância que os experimentos realizados no laboratório têm na formulação de novas teorias. A experimentação fisiológica deve ser um processo ativo; o pesquisador deve provocar a ocorrência do fenômeno que deseja investigar: “experimentação é observação provocada”, nos ensina. E foi por meio de experimentos rigorosamente controlados que Bernard realizou descobertas fundamentais, como o efeito do veneno curare, a participação do pâncreas na digestão e a função glicogênica do fígado, dentre muitas outras. Além dessas descobertas experimentais, Bernard formulou uma ideia que iria unificar definitivamente a fisiologia moderna: a teoria do meio interno. O meio interno refere-se ao fluido entre as células, também chamado de líquido intersticial. A fisiologia poderia, assim, ser entendida como o conjunto de operações realizadas pelo organismo afim da manutenção do equilíbrio do meio interno:

“A fixidez do meio interno é a condição de vida livre, independente: o mecanismo que a possibilita é aquele que assegura no meio interno a manutenção de todas as condições necessária para a vida dos elementos.”

Durante o século XX, diversos mecanismos de controle do meio interno (conhecidos atualmente como mecanismos de retroalimentação negativa) foram desvendados. Em 1929, Walter B. Cannon (1871-1945) recuperou a ideia de Bernard ao propor o termo homeostasia – conceito central da moderna fisiologia. O século XX assistiu também ao nascimento da bioquímica e da biologia molecular, disciplinas que viriam a incorporar-se definitivamente à fisiologia. A elucidação da estrutura do DNA, realizada por James Watson (1928-) e Francis Crick (1916-2004) foi provavelmente um dos pontos altos dessa revolução. A partir dessa descoberta, os mecanismos genômicos responsáveis pelos processos fisiológicos puderam começar a ser desvendados.

Atualmente, o conhecimento de fisiologia se junta a um universo de outros conhecimentos que, não menos importantes, vão se somando e contribuindo de forma muito rápida para o desenvolvimento científico, para a melhoria da qualidade de vida e para a maior longevidade do ser humano.

 

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